sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Distúrbio do sistema de valores.


Apesar de longo, e sabendo que poucos têm paciência para dedicar algum tempo à sua leitura, afirmo que o texto é de suma importância para todos aqueles que se interessam pela condição humana. Invistam um pouco do vosso tempo na sua leitura, nem que seja em diagonal, e reflictam sobre o que está escrito. Depois, tirem as vossas conclusões. Achei muito interessante e oportuno o que foi escrito. Fica a informação para todos os que querem mais saber de si e dos outros




"Acredito que ganância e competição não são resultado de um temperamento humano imutável; cheguei à conclusão de que a ganância e o medo da escassez estão, de fato, sendo continuamente criados e amplificados como resultado direto do tipo de dinheiro que estamos usando...A consequência direta é que temos de lutar uns com os outros para sobreviver."
Bernard Lietaer


GENES DO PENSAMENTO

Dado o ritmo relativamente lento de mudança do ser humano com relação à evolução biológica, as vastas mudanças sociais que ocorreram ao longo dos últimos 4000 anos de história registrada aconteceram devido à evolução do conhecimento - daí a "evolução cultural". Se desejamos buscar um mecanismo para a evolução cultural, é útil considerar a noção de "meme". [327] Definidos como "uma ideia, comportamento, estilo, ou o uso que se espalha de pessoa para pessoa dentro de uma cultura", memes são considerados análogos sociológicos ou culturais a genes, [328] que são "unidades funcionais (biológicas) que controlam a transmissão e expressão de uma ou mais características".

Enquanto os genes basicamente transmitem dados biológicos de pessoa para pessoa através da hereditariedade, memes transmitem dados culturais - ideias - de pessoa para pessoa através da comunicação humana em todas as suas formas.[329] Quando reconhecemos, por exemplo, o poder do avanço tecnológico ao longo do tempo, e como isso mudou drasticamente nosso estilo de vida e valores e continuará a fazê-lo, pode-se visualizar este fenômeno emergente global como uma evolução das ideias, com informações replicantes e mutantes, alterando a cultura conforme o tempo avança.

Diante disso, poderíamos gestualmente ver o estado mental humano e suas propensões para a ação como um tipo de programa. Da mesma forma que os genes codificam um conjunto de instruções que, em conjunto com outros genes e o ambiente produzem resultados sequenciais, o processamento de memes pela capacidade intelectual dos seres humanos, em comum acordo, criam padrões de comportamento de uma forma semelhante. Enquanto o "livre arbítrio" é certamente um debate complexo para se ter com relação ao que realmente desencadeia e manifesta as decisões humanas, é fundamentalmente claro que as ideias das pessoas são limitadas pela sua absorção (educação). Se é dado pouco conhecimento sobre o mundo a uma pessoa, seu processo de decisão será igualmente limitado. [330]

Da mesma maneira que os genes podem sofrer mutações de formas que são prejudiciais ao seu hospedeiro, como o fenômeno do câncer [331], os memes também podem gerar estruturas mentais que servem de malefícios para o hospedeiro (ou sociedade) no que diz respeito às transmissões ideológicas / sociológicas. É aqui que o termo "distúrbio" é introduzido. O distúrbio é definido como "um transtorno ou anormalidade da função" [332]. Portanto, quando se trata de operação social, um distúrbio implicaria em enquadramentos ideológicos institucionalizados que estão desalinhados com o sistema governante maior. Em outras palavras, eles são imprecisos no que diz respeito ao contexto em que eles tentam existir, muitas vezes criando desequilíbrio e desestabilização prejudicial.

Claro, a história está cheia de ideias inicialmente em transição e desestabilizadoras, e essa evolução intelectual em curso é claramente natural e necessária para a condição humana, pois não há tal coisa como um entendimento "absoluto". No entanto, a diferenciação a ser feita aqui é o fato de que quando as ideias persistem por um período suficientemente longo, muitas vezes elas criam conexões emocionais, no nível pessoal ("identidade"), e estabelecimentos institucionais, no nível cultural, que tendem a perpetuar uma espécie de reforço circular, geralmente resistente à mudança e à adaptação.

Reconhecer nossa evolução intelectual como um processo sem fim e estar aberto a novas informações para ajudar a nos alinhar a práticas sustentáveis é claramente uma ética necessária, tanto no nível pessoal quanto no social, se esperamos manter uma adaptação positiva no contexto da evolução cultural. Infelizmente, existem poderosas forças culturais que trabalham contra este interesse no mundo de hoje. Estruturas ideológicas e codificadas na infraestrutura social atual [333] trabalham ativamente contra essa necessidade crítica de adaptação cultural. Uma analogia seria a inanição de nossas células biológicas pela remoção de oxigênio do ambiente – mas no caso cultural estamos restringindo nossa susceptibilidade ao aprendizado e adaptação, com o conhecimento sendo o "oxigênio" pelo qual nós, enquanto espécie, somos capazes de resolver problemas e continuar o progresso.

Este distúrbio é, como será descrito, inerente à tradição do mercado capitalista. Não são apenas as decisões que estão sendo feitas, conscientemente ou não, contra os interesses da adaptação que perpetuam efeitos prejudiciais em muitos níveis – é também o sistema de valores – o emprego de "identidade" e um senso normalizado de tradição, que carregam um força poderosa problemática. Esta situação é agravada ainda mais quando o propósito almejado (ou que parece ser almejado) por tais intenções se relaciona diretamente com nossa sobrevivência e existência. Não há nada mais pessoal para nós do que a forma como nós nos identificamos, e o sistema econômico que nos engloba é invariavelmente uma característica definidora de nossas mentalidades e visão de mundo. Se há algo de errado com este sistema, então isso implica que há algo errado com nós mesmos, uma vez que somos nós que o perpetuamos.

DISTÚRBIO DO SISTEMA DE VALORES

Assim como o câncer é em parte um distúrbio do sistema imunológico, tradições sociológicas que persistem com uma crescente formação de problemas para a sociedade poderiam ser chamadas de um distúrbio do sistema de valores. [334] Este distúrbio tem a ver com uma espécie de psicologia estruturada em certas premissas que receberam crédito ao longo do tempo com base apenas em sua persistência cultural, aliado ao auto-reforço de si próprias. Quanto maior o contexto social do distúrbio, geralmente mais difícil é sua resolução – para não mencionar a dificuldade de seu mero reconhecimento.

Na escala de um sistema social, torna-se ainda mais difícil quando a sociedade como um todo está constantemente sendo condicionada à dinâmica de sua própria estrutura, frequentemente criando reações de auto-preservação poderosas sempre que sua integridade é questionada. Estes, que poderiam ser chamados de "mecanismos fechados de feedback (retroalimentação) intelectual", são o que compreendem a maioria dos argumentos em defesa de nosso sistema socioeconômico atual, assim como os de gerações anteriores. Na realidade, isso parece ser uma tendência sociológica geral, já que, novamente, a identidade das pessoas é invariavelmente associada aos sistemas de crenças dominantes e instituições em que elas foram criadas.

Nas palavras de John McMurtry, Professor Emérito de Filosofia da Universidade de Guelph, no Canadá: "Na última idade das trevas (período medieval), pode-se pesquisar as investigações preservadas de pensadores desta era, de Agostinho até...Ockham, e falhar em descobrir uma única página de crítica ao quadro social estabelecido, por mais absurdos racionalmente possam ser a servidão feudal, o paternalismo absoluto, o direito divino dos reis e o restante. Na ordem final atual, será que é tão diferente? Podemos ver em qualquer meio de comunicação ou até mesmo em imprensa de universidades um parágrafo de claro desmascaramento de um regime global que condena um terço de todas as crianças à desnutrição, sendo que há mais comida do que suficiente disponível? Em tal ordem social, o pensamenot torna-se indistinguível da propaganda. Pode-se falar apenas sobre uma única doutrina, e uma casta sacerdotal dos peritos nesta doutrina prescreve as necessidades e obrigações para todos... A consciência social está encarcerada dentro de um tipo de lógica cerimonial, operando completamente dentro da estrutura recebida de um aparato regulatório prescrito exaustivamente para proteger os privilégios dos privilegiados. A censura metódica triunfa travestida de rigor acadêmico, e o único espaço restante para pesquisar o pensamento torna-se o jogo de racionalizações concorrentes." [335]

Tais reações também são comuns no que diz respeito às práticas estabelecidas em áreas específicas. Por exemplo, Ignaz Semmelweis P. (1818 -1865), um médico húngaro que descobriu que a febre puerperal poderia ser drasticamente reduzida com a simples lavagem padrão das mãos em clínicas obstétricas – essencialmente prenunciando a agora plenamente aceita teoria de doenças dos germes – foi evitado, rejeitado e ridicularizado por sua descoberta. Não foi até muito tempo depois de sua morte que sua realização muito básica foi respeitada. Hoje, alguns usam a frase "O Reflexo Semmelweis" como uma metáfora para a tendência, semelhante a um reflexo, de rejeitar novas evidências ou novos conhecimentos porque contraria normas estabelecidas, crenças ou paradigmas. [336]

No geral, uma vez que um determinado conjunto de ideias tem a confiança de um número suficientemente grande de pessoas, torna-se uma "instituição" - e uma vez que a instituição torna-se dominante de alguma forma, como por existir por um determinado período de tempo, essa instituição poderia então ser considerada "estabelecida". "Estabelecimentos institucionais" são simplesmente tradições sociais que dão a ilusão de permanência, e quanto mais tempo elas persistem, geralmente mais intensa é a defesa de seu direito de existir pela maioria da cultura.

Se examinarmos os estabelecimentos institucionais que nós aceitamos hoje – desde atributos de sistemas macro, como o sistema financeiro, o sistema jurídico, o sistema político e os principais sistemas religiosos – para atributos de sistemas micro, tais como o materialismo, o casamento, celebridade, etc – devemos nos lembrar que nenhuma dessas ideias são realmente verdadeiras no sentido físico. São estruturas 'memes' temporais que criamos para servir aos nossos propósitos considerando as condições em certos momentos; e não importa o quanto nós nos vinculemos emocionalmente a estas questões, não importa quão grande possa se tornar uma instituição; não importa quantas pessoas possam acreditar em tais instituições – elas ainda são imposições do pensamento e transitórias por natureza.

Então, voltando ao contexto do distúrbio do sistema de valor, o capitalismo de mercado, enquanto indiscutível e profundamente dissociado da realidade física, e fonte da vasta maioria dos problemas sociais do mundo atual, mantém-se em seu lugar por meio de um conjunto de valores culturalmente reforçados e estabelecimentos de poder, aos quais a sociedade é fundamentalmente condicionada e geralmente inclinada a defender. Ele se faz cada vez mais poderoso em sua persuasão, já que o distúrbio do sistema de valores dominante hoje nasce de pressupostos relativos à crucial sobrevivência humana em si.

CARACTERÍSTICAS DA PATOLOGIA

Para se fazer uma avaliação crítica de uma forma de pensar já existente, é necessário criar um referencial básico aceito mutuamente. "O relativismo cultural" [337] é uma noção antropológica que se refere ao fato de que diferentes grupos culturais geram diferentes percepções de "verdade" ou "realidade". "Relativismo moral" [338], que é uma noção semelhante, tem a ver com a variação do que é considerado "correto" ou "ético". Ao longo da história humana, essas distinções tornaram-se crescentemente mais estreitas e têm cada vez mais reduzido a "integridade relativa" de diversas crenças, desde a revolução científica do pensamento causal do Renascimento em diante.

O fato é que as crenças não são iguais em sua validade. Algumas são mais verdadeiras do que outras e, portanto, algumas são mais disfuncionais do que outras no contexto da vida real. O método científico de chegar a conclusões é a referência definitiva sobre o qual a integridade dos valores humanos pode ser medida, e esta realidade moderna desmistifica a defesa "relativista" comum da crença humana subjetiva. Não se trata de "certo" e "errado", mas sobre o que funciona ou não. A integridade de nossos valores e crenças só é tão boa quanto a forma como ela está alinhada com o mundo natural. Esta é a base comum que todos nós compartilhamos.

Este conceito está diretamente relacionado com a sustentabilidade no contexto mais amplo da própria sobrevivência humana, já que um sistema social sustentável naturalmente deve ter valores sustentáveis ​​para facilitar e perpetuar a estrutura. Infelizmente, a bagagem evolutiva de nossa história cultural manteve estruturas de valores que são tão poderosas, e ainda assim tão claramente dissociadas da realidade, que nossas suposições pessoais e sociais de felicidade, sucesso e progresso continuam a ser profundamente pervertidas e existem em discordância com as leis governantes de nosso habitat e natureza humana. O ser humano, de fato, tem uma natureza comum e enquanto nada parece 100% universal em relação às espécies, algumas pressões e causadores de estresse podem gerar, em média, graves problemas de saúde pública. [339] Da mesma forma, se nossos valores apoiarem comportamentos que não estão em conformidade com a nossa sustentabilidade física no planeta Terra, então, naturalmente, podemos esperar problemas cada vez maiores em nível ambiental. [340]

O sistema de valores dominante que o modelo socioeconômico capitalista perpetua é, sem dúvida, profundamente patológico à condição humana porque os mecanismos relacionados com a sobrevivência e recompensa compõem apegos emocionais e formas de auto-preservação os quais estão, essencialmente, enraizados em uma espécie de desespero e medo primitivo. O ethos fundamental é de uma pressão anti-social motivada pela escassez, o que obriga todos os jogadores do jogo a serem geralmente exploradores e antagônicos tanto dos outros quanto do habitat. Isso também criou pressões que evitam a facilitação dos interesses sociais devido a uma consequente perda de lucro [341], promovendo esta disparidade emocional induzida pelo estresse. O resultado é um ciclo vicioso de abuso geral, egoísmo mesquinho e descaso social e ambiental.

Claro que, historicamente, essas características cáusticas são geralmente defendidas simplesmente como "assim que as coisas são" - como se a nossa psicologia evolutiva devesse ficar presa neste estado. Na verdade, se as doutrinas psicológicas alardeadas da teoria tradicional de mercado são verdadeiras ("utilitarismo neoclássico") sobre os nossos limites aparentes em relação a uma estrutura social "viável", então o desequilíbrio, destruição ambiental, opressão, violência, tirania, transtornos de personalidade, guerra, exploração, ganância egoísta, materialismo fútil, concorrência e outras realidades tão divisionistas, desumanas e desestabilizadoras são simplesmente inalteráveis e, portanto, toda a sociedade deve não fazer nada, apenas trabalhar em torno dessas inevitabilidades com quaisquer "controles" que possamos colocar em prática para "gerenciar" essas realidades da condição humana. É como se o ser humano estivesse condenado a um distúrbio mental grave e incurável - um retardo fixo - que simplesmente não pode ser superado, de modo que tudo na sociedade deva ser alterado em torno dele em uma tentativa de lidar com isso.

No entanto, quanto mais vivemos como seres humanos; quanto mais na história somos capazes de ver a nós mesmos ao longo das gerações; quanto mais formos capazes de comparar os comportamentos de diferentes culturas pelo mundo e através da história - mais claro se torna que a nossa capacidade humana está sendo inibida diretamente por uma estrutura arcaica de recompensa e sobrevivência que continua a reforçar valores primitivos e desesperados e, enquanto tais valores possam ter servido a um papel evolutivo no passado, o presente e o futuro prenunciado deixam, indiscutivelmente, esses padrões comportamentais expostos como prejudiciais e insustentáveis, como a íntegra deste texto expressou longamente.

PARALISIA DA AUTO-PRESERVAÇÃO

Enquanto cada um de nós, geralmente, deseja sobreviver, e em um estado saudável, naturalmente preparados para defender essa sobrevivência caso necessário, a auto-preservação no atual contexto socioeconômico estende, desnecessariamente, essa tendência de forma que inibe severamente o progresso social e a resolução de problemas. Na verdade, pode-se dizer que essa preservação em curto prazo ocorre muitas vezes às custas da integridade em longo prazo.

O exemplo mais óbvio disso tem a ver com a natureza fundamental da busca e manutenção de uma renda, a força vital do sistema de mercado e, por extensão, da sobrevivência humana. Uma vez que um negócio seja bem-sucedido em ganhar participação no mercado, geralmente sustentando funcionários juntamente com proprietários, o negócio gravita, naturalmente, para um interesse em preservar essa cota de mercado, que gera renda, a todos os custos. Associações profundas de valores são geradas a partir do momento em que o negócio não é mais apenas uma entidade arbitrária que produz um bem ou serviço - é agora um meio de sustentar a vida para todos os envolvidos.

O resultado é uma batalha constante e socialmente debilitante, não só com os concorrentes que também buscam o mesmo mercado consumidor, mas com a inovação e a mudança em si. Embora o progresso tecnológico seja uma progressão constante e fluida no nível científico, o contexto da economia de mercado vê essa emergência como uma ameaça às ideias existentes e rentáveis atualmente. Níveis enormes de "corrupção" histórica, surgimento de cartel e monopólio e de outros movimentos defensivos dos negócios existentes podem ser vistos ao longo da história, cada ato buscando garantir a produção de renda, independentemente dos custos sociais. [342]

Outro exemplo tem a ver com a neurose psicológica construída a partir do incentivo de recompensa baseada em crédito, o qual é inerente ao sistema de mercado. Embora esteja intelectualmente claro que nenhuma pessoa inventa coisa alguma, dada a realidade de que todo o conhecimento é gerado em série e, invariavelmente, é cumulativo ao longo do tempo, a característica de "propriedade" da economia de mercado cria uma tendência não só em reduzir o fluxo de informações por meio de patentes e "segredos comerciais", mas também reforça a ideia de "propriedade intelectual", apesar da real falácia dessa noção em si mesma.

No nível do sistema de valores, isso transformou-se na noção de um direito a levar "crédito" por algo e, daí, as muitas associações do "ego" com ideias apresentadas ou "invenções". Hoje no mundo, esse fenômeno ganhou vida própria com uma tendência de muitos dos que contribuem frequentemente buscarem elevar o status de seu "crédito" pela ideia, mesmo que eles sejam, claramente, mais uma vez, parte de um continuum maior do que eles mesmos. Enquanto o apreço pelo tempo e trabalho de uma determinada pessoa pelo progresso de uma ideia é um incentivo social produtivo e fundamental para o nosso senso de propósito em ação, a perversão da propriedade intelectual e todos os seus atributos inventados estendem essa satisfação operante a uma distorção.

De fato, na escala mais larga de culminação do conhecimento, tais atos de "valorização" inevitavelmente tornam-se irrelevantes na memória histórica. Hoje, por exemplo, quando usamos um computador moderno para auxiliar nossas vidas, nós raramente pensamos sobre os milhares de anos de estudo intelectual que descobriram as dinâmicas científicas essenciais envolvidas, nem a enorme quantidade de tempo gasto por praticamente inúmeras pessoas para facilitar a "invenção" de uma ferramenta na sua forma atual.
É somente no contexto da manifestação do ego e da segurança da recompensa monetária que isso se torna um valor "natural", pela sua relação com o sistema de mercado. Se as pessoas não reclamarem o "crédito", elas não serão recompensadas ​​e, portanto, não vão ganhar sua sobrevivência por essa contribuição no mercado. Assim, essa condição tem agravado esta neurose que é invariavelmente sufocante para o progresso através do compartilhamento do conhecimento.

Além disso, distúrbios associados à "auto-preservação" do mercado podem assumir muitas outras formas, incluindo o uso do governo como uma ferramenta [343], a poluição do meio acadêmico e da própria informação [344] (já que as instituições de ensino são sustentadas por receitas também), e até mesmo as relações interpessoais cotidianas. [345] O medo inerente à perda dos meios de subsistência naturalmente substitui quase tudo e até mesmo a pessoa mais "ética" ou "moral", quando confrontada com o risco da não-sobrevivência, pode, geralmente, justificar ações que seriam tradicionalmente chamadas de "corruptas". Essa pressão é constante e é, em parte, a fonte da frequentemente denominada "criminalidade" e da paralisia social que vemos hoje.

COMPETIÇÃO, EXPLORAÇÃO E GUERRA DE CLASSES

Com base no ponto anterior, a exploração, que é inerente à moldura mental competitiva, tem permeado a essência do que, comumente, significa ter "sucesso". Vemos a retórica de "levar vantagem" em muitas facetas de nossas vidas. O ato de manipular e explorar por ganho competitivo tornou-se uma força subjacente da cultura moderna muito além do contexto do sistema de mercado. A atitude de ver os outros e o mundo como apenas um meio a se "conquistar", e de manter a si próprio ou um determinado grupo na dianteira, está gerando uma distorção psicológica que pode ser encontrada nos relacionamentos amorosos, amizades, estruturas familiares, nacionalismo e até mesmo em como nos relacionamos com o habitat que estamos inseridos - em que buscamos explorar e desprezar os recursos ambientais pelo ganho pessoal de curto prazo e vantagem. Todos os elementos de nossas vidas são, necessariamente, vistos da perspectiva de "o que eu posso tirar disso?".

Um estudo realizado no Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2011, constatou que: "... os indivíduos da classe alta se comportam de forma mais antiética do que os indivíduos de classe baixa... indivíduos da classe alta estavam mais propensos a infringir a lei enquanto dirigiam, em relação aos indivíduos de classe mais baixa. Nos estudos em laboratório que se seguiram, os indivíduos da classe alta estiveram mais propensos a apresentar tendências de tomada de decisões antiéticas, levar bens de valor dos outros, mentir em uma negociação, trapacear para aumentar suas chances de ganhar um prêmio e endossar o comportamento antiético no trabalho quando comparados aos indivíduos de classe mais baixa. Dados mediadores e moderadores demonstraram que tendências antiéticas dos indivíduos da classe alta são explicados, em parte, por suas atitudes mais favoráveis ​​à ganância." [346] Estudos dessa natureza são muito interessantes, pois revelam que o argumento comum, ao defender o atual sistema social, sobre a natureza humana de as pessoas inevitavelmente "serem competitivas e exploratórias", em circunstâncias extremas, é ultrapassado. Relações de classe não são relações genéticas, ainda que as nuances de propensões individuais possam ser discutidas. Esse estudo expressa um fenômeno cultural global, pois é axiomático assumir que a atitude geral de desrespeito pelas consequências negativas externas, o chamado "comportamento antiético" expressado pela classe alta, é resultado dos ​​tipos de valores necessários para se alcançar a posição de realmente se tornar "classe alta". [347]

Na retórica poética cotidiana, essa intuição tem sido considerada verdadeira ao longo dos séculos na observação de que aqueles que alcançam "sucesso" nos negócios, muitas vezes, são "insensíveis" e "cruéis". Parece haver uma perda geral de empatia naqueles que alcançam esse tal "sucesso" e é óbvio, intuitivamente, o porquê desse ser o caso, dado o distúrbio do sistema de valores da competição despreziva inerente à psicologia do sistema de mercado. No geral, quanto mais carinhoso(a) e empático(a) você for, menor a probabilidade de você obter sucesso financeiramente - não é diferente dos esportes em geral, onde você não ajuda um jogador adversário atingir seus objetivos pois assim você estará mais propenso a perder.

Em geral, as classes mais baixas são socialmente mais humanas em muitos aspectos. Por exemplo, pesquisas mostram que os pobres dão uma maior porcentagem de sua renda (4,3%) para a caridade do que os ricos (2,1%). Um estudo de 2010 concluiu que: "...os indivíduos de classe mais baixa são mais generosos... caridosos... confiáveis... e prestativos... em comparação com os indivíduos da classe alta. Dados mediadores e moderadores mostraram que os indivíduos de classe baixa agiram de uma forma mais pró-social por causa de um maior comprometimento com valores igualitários e sentimentos de compaixão. São discutidas implicações para a classe social, comportamento pró-social e desigualdade econômica." [348] [349] Um estudo realizado pelo Chronicle of Philanthropy utilizando dados fiscais da Receita Federal dos Estados Unidos, mostrou que as famílias que ganham entre US$50.000 e US$75.000 por ano dão uma média de 7,6% de sua renda discricionária para a caridade. Isso se compara a 4,2% para as pessoas que ganham US$ 100.000 ou mais. Em alguns dos bairros mais ricos, com uma grande parcela de pessoas que ganham US$200.000 ou mais por ano, a taxa de doação média foi de 2,8%. [350] [351]

SUCESSO STATUS

Uma peça fundamental do modelo capitalista é a suposição implícita de que aqueles que mais contribuem devem ganhar mais. Em outras palavras, presume-se que para se tornar, digamos, um bilionário, você deve ter feito algo importante e útil para a sociedade. Isso é, com certeza, manifestamente falso. A grande maioria das pessoas extremamente ricas iniciam a sua riqueza a partir de mecanismos que não são socialmente contributivos, quando detalhados e analisados, em qualquer nível direto ou criativo. [352]

A engenharia, a resolução de problemas e inovação criativa quase sempre ocorrem ao nível dos trabalhadores dos escalões inferiores do complexo empresarial, apenas para serem capitalizados por aqueles que estão no topo (proprietários) que são hábeis no jogo artificial de gerar um "mercado". Não se trata de negar a inteligência ou trabalho duro daqueles que possuem grandes riquezas, mas mostrar que as recompensas do sistema são realocadas para aqueles que exploram os mecanismos do mercado, e não para aqueles que realmente projetam e criam. De fato, um dos setores mais recompensados da economia global de hoje é o de investimento e finanças. [353] Esse é um exemplo clássico de que ser um analista de "hedge fund" (fundos de cobertura), movendo dinheiro de um lado para o outro com o mero propósito de ganhar mais dinheiro, com nenhuma contribuição para o desenvolvimento criativo [354], é uma das ocupações mais bem pagas no mundo de hoje.

Da mesma forma, a própria noção de "sucesso" na cultura de hoje é medida pela riqueza material por si própria. Fama, poder e outras formas de atenção andam de mãos dadas com a riqueza material. Ser pobre é ser abominado, enquanto ser rico é ser admirado. Em quase todo o espectro social, aqueles que possuem altos níveis de riqueza são tratados com imenso respeito. Parte disso tem a ver com um mecanismo de sobrevivência ditado pelo sistema, como o interesse pessoal em aprender a como também se tornar um "sucesso" - mas, no geral, se transformou em um fetiche estranho, em que a ideia de ser rico, poderoso e famoso, não importando como, é a força propulsora.

O distúrbio no sistema de valores em gratificar, em verdade, os mais cruéis e egoístas de nossa sociedade, tanto por meios financeiros quanto pela adoração e respeito público, é uma das consequências mais penetrantes e insidiosas do sistema de incentivos inerente ao modelo capitalista. Esse distúrbio não só trabalha para ignorar um verdadeiro interesse em tipos de inovação e resolução de problemas que, inerentemente, não trazem retorno monetário, mas também reforça a própria existência do sistema de mercado, justificando-se por meio da obtenção de status elevado por aqueles que "ganham" no sistema, independentemente da sua verdadeira contribuição ou dos custos sociais e ambientais.

O sociólogo Thorstein Veblen escreveu extensivamente sobre o assunto, referindo-se a essa "virtude", como predatória: "Quando a cultura predatória atinge um desenvolvimento mais completo, surge uma distinção entre empregos... O homem "honrado" deve não somente evidenciar a sua capacidade de exploração predatória, mas também deve evitar o envolvimento com ocupações que não envolvem a exploração. Os empregos submissos, aqueles que não envolvem a destruição óbvia de vida e nenhuma coerção espetacular de antagonistas refratários, caem em descrédito e são relegados para aqueles membros da comunidade com deficiência na sua capacidade predatória; ou seja, aqueles aos quais faltam solidez, agilidade, ou ferocidade... Portanto, o bárbaro forte e capaz da cultura predatória, que é consciente do seu bom nome... coloca seu tempo nas artes viris de guerra e dedica seu talento a conceber formas e meios de perturbar a paz. Dessa forma é que se encontra honra." [355]

William Thompson, em sua obra "Uma Investigação sobre os Princípios da Distribuição de Riqueza Mais Propícia para a Felicidade Humana", reafirma a realidade dessa influência associativa:

"Nossa posição seguinte é que a riqueza excessiva desperta a admiração e a imitação, e, desta forma, se difunde a prática dos vícios dos ricos entre o resto da comunidade; ou produz nela outros vícios decorrentes de sua situação em relação aos excessivamente ricos. Sobre este ponto, nada é mais óbvio do que a operação universal do princípio mais comum da nossa natureza - o de associação. A riqueza, como um meio de felicidade... é admirada ou invejada por todos; o comportamento e o caráter que estão conectados com a abundância dessas coisas boas, sempre vêm à mente associados a ela..."[356]

Classes e luta de classes são a consequência natural à medida que as associações de valor à riqueza e ao poder, que se manifestam no sistema atual, tornam-se uma questão de identidade emocional com o passar do tempo. O interesse pelo status começa a assumir uma vida própria e gera ações de auto-preservação por parte da classe alta, que procura manter (ou elevar) o seu status de formas que podem até não mais se relacionar com dinheiro ou riqueza material. Auto-preservação, neste caso, estende-se a algo como a dependência de drogas. Assim como um apostador crônico precisa da descarga de endorfina proporcionada pela vitória para se sentir bem, aqueles na classe alta muitas vezes desenvolvem compulsões semelhantes em relação à percepção do estado de seu status e riqueza.

O termo "ganância" é diversas vezes usado para diferenciar aqueles que exploram modestamente daqueles que exploram excessivamente. A ganância é, portanto, uma noção relativa, assim como ser "rico" é uma noção relativa. O termo "privação relativa" [357] refere-se ao descontentamento que as pessoas sentem quando comparam as suas posições com as de outros e percebem que têm menos do que acreditam ter direito. Esse fenômeno psicológico não tem fim e, no âmbito do sistema de incentivo capitalista ao sucesso material, a sua presença como um distúrbio grave do sistema de valores é evidente a nível de saúde mental.

A manutenção das necessidades básicas e de um padrão de vida de qualidade são importantes para a saúde física e mental, e qualquer coisa além desse equilíbrio, no contexto de comparação social, tem a capacidade de criar neuroses graves e distorção social. Não só não existe "ganhador" no final, quando se trata da percepção subjetiva de status e riqueza, como também muitas vezes há uma dissociação desses elementos da maior parte da experiência humana, gerando alienação e desumanização de várias maneiras. Essa perda de empatia não tem resultado positivo a nível social. Os valores de recompensa predatórios inerentes ao sistema de mercado praticamente garantem um conflito interminável e abuso. [358]

É claro que há o mito de que essa neurose de buscar "mais e mais" status e riqueza seja a principal força condutora do progresso social e da inovação. Embora possa haver alguma verdade básica para esta suposição intuitiva, a intenção, novamente, não é a contribuição social, e sim a vantagem e o ganho financeiro. É como dizer que ser perseguido por uma matilha de lobos famintos prontos para te comer é bom para sua saúde, uma vez que vai mantê-lo correndo. Apesar de certas realizações estarem indubitavelmente ocorrendo, a força condutora (intenção), novamente, tem pouco a ver com essas realizações, e os subprodutos nocivos e a inerente paralisia de ordem maior invalidam a ideia de que os valores de competição, ganância material e o status são fontes legítimas de progresso social.

Na verdade, o epidemiologista Richard Wilkinson extrapolou uma comparação entre países ricos orientada pela disparidade de renda presente em cada população. Verificou-se que os países com menor disparidade de renda na verdade eram mais inovadores [359], e quando consideramos que a valorização da competitividade tem um grande papel no que diz respeito a quão grave é a diferença entre ricos e pobres, é axiomático considerar que os valores de igualdade e colaboração têm poder mais criativo do que a retórica do incentivo econômico tradicional alegaria.

Como argumento final nesta subseção, o tema do materialismo e status também pode ser estendido, semelhantemente, para a questão da vaidade. Apesar de ser um leve desvio do nosso argumento principal, a cultura de hoje baseada na vaidade apresenta relação direta com essas forças condutoras de status e medidas de "sucesso" enraizadas nos incentivos psicológicos inerentes ao sistema capitalista. Levando em consideração que o sistema de valores de "aquisição" é, de fato, necessário para que o modelo de consumo funcione, é natural que o marketing e a publicidade gerem uma contínua insatisfação, inclusive na maneira como nos sentimos em relação a nossa aparência física. De fato, um estudo foi realizado há alguns anos na ilha de Fiji, em que a televisão ocidental foi introduzida a uma cultura que nunca a tinha experimentado antes. Até o final do período de observação, o efeito dos valores materialistas e da vaidade teve seu preço. Uma porcentagem relevante de jovens mulheres, por exemplo, que antes adotava um estilo de peso saudável e características cheias, tornou-se obcecada em ser magra. Transtornos alimentares, que eram praticamente desconhecidos nessa cultura, começaram a se espalhar e, especificamente, as mulheres foram transformadas. [360]

POLARIZAÇÃO IDEOLÓGICA & CULPA

Quando o assunto "o que deu errado" com o mundo de hoje é abordado - dada a geral pobreza, desequilíbrio ecológico, desumanidade, desestabilização econômica e similares - uma polarização no debate, muitas vezes, se desencadeia. Dualidades como "a direita ou a esquerda" ou "liberal ou conservador" são comuns, o que implica que nas faixas de preferência e compreensão humanas, há uma linha rígida de orientação que incorpora todas as possibilidades conhecidas.

Junto com isso também há a antiga, mas ainda comum, dualidade de "coletivismo versus livre mercado". Em suma, essa dualidade pressupõe que todas as opções de preferência econômica devem aderir à ideia de que a sociedade deve ser baseada, ou na suposta vontade democrática de todas as pessoas sob a forma de "livre-comércio", ou que um pequeno grupo de pessoas deve estar no controle e dizer às outras o que fazer. Devido à história negra do totalitarismo que assolou o século XX, uma orientação de valor baseada no medo, que rejeita qualquer coisa que sugira, mesmo que remotamente, a aparência de "coletivismo", é extremamente comum hoje em dia, com a palavra "socialismo" relacionada muitas vezes de uma maneira depreciativa. [361]

Como observado antes neste ensaio, o senso de possibilidades das pessoas está diretamente relacionado ao seu conhecimento - ao que aprenderam. Se as instituições educacionais e sociais tradicionais apresentarem toda a variação socioeconômica dentro dos limites fechados de tais quadros de referência, as pessoas provavelmente irão refletir essa suposição (meme) e perpetuá-la no pensamento e na prática. Se você não é "abc", então você deve ser "xyz" - este é o meme do pensamento comum. Até mesmo o estabelecido sistema político dos Estados Unidos existe nesse paradigma, pois se você não é um "republicano", você deve ser um "democrata", etc.

Em outras palavras, há uma inibição direta das possibilidades e, nesse contexto, muitas vezes, uma estrutura de valores que constrói laços emocionais com falsas dualidades se manifesta. Esses valores são, hoje, em muitos níveis, obstáculos extremos para o progresso. De fato, como um adendo, se a intenção de uma classe dominante fosse limitar qualquer interferência das classes mais baixas, ela faria com que o senso de possibilidades das pessoas fosse limitado. [362]

Por exemplo, o suposto problema da "intervenção do Estado" no livre mercado, um tema constante dos apologistas do capitalismo, diz, essencialmente, que, já que várias políticas e práticas do governo limitam o livre comércio de alguma forma [363], essa é a fonte do problema que gera a ineficiência do mercado. Esse jogo de culpa, de fato, vai e volta entre os que afirmam que o mercado que é o problema e aqueles que afirmam que é a interferência do Estado no mercado.[364]

O que não se fala é sobre a realidade que rompe essa dualidade de que o Estado, na sua forma histórica, é uma extensão do próprio sistema capitalista. O governo não criou esse sistema. O sistema criou o governo, ou, mais precisamente - os governos se desenvolveram como um instrumento. Todos os sistemas socioeconômicos têm suas raízes na base do desdobramento industrial e na sobrevivência básica. Assim como o feudalismo, baseado em uma sociedade agrária, orientou sua estrutura de classe nas relações com a terra para produção de subsistência, o mesmo é válido para as chamadas "democracias" do mundo de hoje. Portanto, a ideia de que o governo de estado não tem relação ou influência do capitalismo é uma teoria puramente abstrata, com nenhum fundamento na realidade. O capitalismo essencialmente moldou a natureza do aparato governamental e seu desdobramento - e não o contrário.

Então, quando as pessoas argumentam que a regulação governamental do mercado é a raiz do problema e que o mercado deve ser "livre", sem inibição estrutural ou jurídica, eles estão se confundindo em sua compreensão associativa. Todo o sistema legal, que é a ferramenta central do governo, será sempre "infiltrada" e usada para ajudar nas táticas competitivas por parte das empresas de modo a manter e aumentar vantagens, uma vez que essa é a própria natureza do jogo. Esperar outra coisa é assumir que há realmente limites "morais" para o ato de concorrência. No entanto, isso é completamente subjetivo. Tais premissas éticas e morais não têm qualquer base empírica, especialmente quando a própria natureza do sistema socioeconômico é orientada em torno do poder, da exploração e da competição - tudo isso sendo considerado, de fato, como as virtudes ideais do "bom empresário", conforme observado antes.

Se uma instituição que visa lucro ganha poder dentro do governo (que é a intenção exata do "lobby empresarial") e manipula o aparato governamental para favorecer com vantagens os seus negócios ou indústria, então isso é simplesmente um bom negócio. É somente quando os ataques competitivos alcançam níveis altos de injustiça que se tomam medidas para preservar a ilusão de "equilíbrio". Vemos isso com leis antitruste e afins. [365] Essas leis são, na realidade, não para proteger o "livre-comércio" ou algo semelhante - mas para resolver atos extremos de intenções competitivas inerentes ao mercado, com todos os lados disputando vantagens por todos os meios possíveis. [366]

Até mesmo as próprias constituintes de todos os governos do mundo hoje são, invariavelmente, da classe corporativa-empresarial. Assim, valores profundos dos negócios são claramente inerentes às mentalidades de quem está no poder. Thorstein Veblen escreveu sobre essa realidade no início do século 20:

"Os oficiais responsáveis ​​e seus principais chefes administrativos - os quais podem ser chamados razoavelmente de "governo" ou a "administração"- são, invariável e caracteristicamente, retirados das classes beneficiárias; nobres, cavalheiros ou homens de negócios que aparecem sempre com o mesmo propósito em mãos; o ponto de tudo isso sendo que o homem comum não chega a esses recintos e não participa desses conselhos que supostamente servem para guiar o destino das nações." [367]

Assim, argumentar que o "livre mercado" não é "livre" devido à intervenção, é não compreender o que a natureza de ser "livre" realmente significa, no que diz respeito ao sistema. A "liberdade" não é a liberdade de todos serem capazes de participar "igualmente" do mercado aberto e toda a retórica utópica que ouvimos apologistas do sistema capitalista falar atualmente - a liberdade real é, na verdade, a liberdade para dominar, suprimir e bater outros negócios por quaisquer meios de competição possíveis. Aqui, não existe "a Justiça é cega". Na verdade, se o governo não "interferisse" por meio de leis antitruste/monopólio ou "socorresse" os bancos e similares - todo o complexo de mercado teria se auto-destruído há muito tempo. Em parte, essa instabilidade inerente do mercado é o que economistas, como John Maynard Keynes, basicamente entenderam, mas, sem dúvida, de uma forma limitada. [368]

INDIVIDUALIDADE LIBERDADE

Muitas vezes as pessoas falam sobre "liberdade" de uma forma que é mais um gesto indescritível do que uma circunstância tangível. Ouvimos essa retórica das instituições políticas e econômicas atuais, de onde são constantemente feitas essas associações de "democracia" com "liberdade", tanto no nível da prática tradicional de votação como no do movimento de dinheiro propriamente dito através do livre comércio independente. Esses memes sociopolíticos também são reforçados de forma polarizada, relativamente, em que constantemente são usados exemplos de opressão e perda de liberdade nos sistemas sociais anteriores para defender o estado atual das coisas.

As obras criativas de filósofos, artistas e escritores que foram influentes ao expandir várias noções ideológicas dessa "liberdade", muitas vezes em detrimento da vulnerabilidade social, aumentando essa polarização dogmática, aumentaram ainda mais a composição desses valores. [369] Em resumo, uma grande dose de medo e força emocional existe em torno da noção de mudança social e de como ela pode afetar as nossas vidas no rumo da liberdade e da individualidade.

No entanto, se dermos um passo atrás e pensarmos sobre o significado de liberdade, longe desses memes culturais, descobrimos que as noções de liberdade podem ser relativas dependendo da história humana, assim como os padrões de vida e até mesmo a própria expressão de si mesmo. Portanto, a fim de decidir o que é liberdade e como qualificá-la, é preciso medi-la a partir de, por um lado (a) uma perspectiva histórica, e, por outro, pelas (b) possibilidades futuras.

(a) Historicamente, a preocupação fundamental baseia-se no medo do poder e do abuso de poder. A história humana é, certamente, em parte, uma perpétua luta pelo poder. Abastecida por crenças e valores religiosos e filosóficos extremamente sectaristas, que manifestaram escravidões degradantes, subjugação das mulheres, genocídios periódicos, perseguições por heresia (liberdade de expressão, ou o que foi e ainda é conhecido como "livre pensamento"), direito divino de reis e semelhantes, pode-se argumentar que a história humana, nesse contexto, é uma história de superstições perigosas e infundadas tornadas sagradas por valores/compreensões primitivas daquelas épocas, em detrimento do bem-estar humano e do equilíbrio social. O medo e a escassez desses períodos antigos parecem ter ampliado a pior parte do que se pode considerar a "natureza humana", muitas vezes em um ciclo vicioso em busca de poder como uma forma de evitar o abuso de poder.

No entanto, é extremamente importante notar que temos estado em um processo de transição para longe desses valores e crenças, em geral, arcaicos, com a cultura global e suas instituições abraçando lentamente a causalidade científica e seu mérito no que diz respeito ao que é real e o que não é. Com isso, tornaram-se claras certas tendências positivas.

Saímos do poder "divino" e supremo dos hereditariamente determinados reis e faraós para um sistema com uma participação, ainda que muito limitada, do público em geral através do chamado "processo democrático" na maior parte do mundo. A exploração humana, o abuso e a escravidão perderam suas defesas comuns de superioridade religiosa, racial ou de gênero, e aprimoraram-se um pouco, na medida em que escravidão, hoje em dia, tem a forma menos grave de "trabalho assalariado" - no contexto mais amplo de associações com "classes" - conforme determinado pelo lugar de cada um na hierarquia econômica. A economia de mercado, em todas as suas formas históricas, também tem sido capaz de superar predeterminações do tipo "casta" racial, uma vez que permite um nível de (limitada) mobilidade social na comunidade, em que a renda adquirida facilita a "liberdade" de uma forma geral. [370]

Tais realidades progressistas precisam ser levadas em consideração conforme o capitalismo, com todas suas falhas, tem servido para ajudar a melhorar certos aspectos da condição social. No entanto, o que não mudou foi a premissa subjacente que ainda é elitista e preconceituosa na forma como favorece um grupo em detrimento de outro, tanto estrutural quanto sociologicamente. Apenas que nesse caso, o "grupo" favorecido não tem mais muito a ver com sexo, raça ou religião - mas com uma espécie de oportunismo forçado e uma mentalidade competitiva que o conduz ao topo da hierarquia de classes, inevitavelmente às custas dos outros.

Capitalismo, pode-se argumentar, é, na realidade, um sistema de escravidão pós-moderno com uma nova orientação de valores de "liberdade de concorrência" o sustentando. Essa noção reinventada de "liberdade" diz, basicamente, que todos nós somos "livres" para competir uns com os outros e ter o que pudermos. No entanto, como observado anteriormente, tal estado de "liberdade ampla", sem abuso, opressão e vantagem estrutural - é obviamente impossível. Assim, enquanto os defensores do capitalismo podem apresentar as melhoras sociais que ocorreram desde o seu advento como evidências de sua eficácia social, temos de reconhecer que a sua forma básica não se dá pelo interesse pela liberdade humana, mas é um eco de intolerância social que esteve poluindo a cultura por milhares de anos, enraizado em uma psicologia geral de elitismo e escassez.

Hoje, a verdadeira liberdade está diretamente relacionada à quantidade de dinheiro que uma pessoa possui. Aqueles abaixo da linha de pobreza têm graves limitações à liberdade pessoal em comparação aos ricos. De forma semelhante, enquanto os defensores do livre mercado falam, muitas vezes, de "coerção" no contexto do poder do Estado, a realidade da coerção econômica é ignorada. Teóricos da economia tradicional constantemente usam uma retórica que sugere que tudo é uma questão de escolha no mercado, e, se uma pessoa deseja ter um emprego ou não, a escolha é dela.

No entanto, aqueles em situação de pobreza, que são a maioria [371], enfrentam uma severa redução de escolhas. As pressões de sua capacidade econômica limitada criam um poderoso estado coercivo no qual eles não só precisam assumir empregos que podem não ser apreciados por eles para sua sobrevivência, como também ficam, muitas vezes, sujeitos a uma ampla exploração, devido a esse mesmo desespero, em forma de salários baixos. De fato, a pobreza em geral, nesse contexto, é uma condição muito positiva para a classe capitalista, pois garante um custo-benefício em forma de mão-de-obra barata.

Então, novamente, enquanto é possível notar alguma melhora social ao longo do tempo, essa é, realmente, apenas uma variação de um tema comum de elitismo geral, exploração e intolerância. A longa história de escassez de recursos e limites de produção presumidos também compôs esse pensamento, no sentido Malthusiano [372], em que a ideia de todos encontrarem algum nível de igualdade econômica foi considerada simplesmente impossível.

(b) Contudo, a ciência moderna e o desenvolvimento exponencial da aplicação técnica, juntamente com uma consciência mais profunda sobre a condição humana [373], abriram a porta para futuras possibilidades de melhoria social e, de fato, para uma nova elevação da liberdade em maneiras nunca antes vistas. Essa tomada de consciência apresenta um problema, já que a possibilidade de alcançar esse novo nível está profundamente inibida pelos valores e fundações estabelecidos da ordem social capitalista tradicional. Em outras palavras, o sistema de mercado simplesmente não pode facilitar essas melhorias, porque a natureza do surgimento destas é contra os próprios mecanismos do sistema.

Por exemplo, a eficiência hoje possível devido ao nível técnico e científico, se aplicada corretamente, poderia fornecer um alto padrão de vida a todos os seres humanos na Terra, e também uma remoção do trabalho perigoso e monótono através da aplicação da mecanização cibernética. [374] No mundo de hoje, a grande maioria das pessoas passam a maior parte de suas vidas trabalhando e dormindo. Muitas dessas ocupações não são apreciadas [375] e são, indiscutivelmente, irrelevantes no que diz respeito ao verdadeiro desenvolvimento e contribuição, pessoal ou social.

Assim, se queremos pensar sobre o significado da liberdade em um nível básico, isso significa ser capaz de dirigir a sua vida da maneira que você quiser, dentro da razão. [376] Ser capaz de viver a sua vida sem se preocupar com a sua sobrevivência básica e saúde, ou da sua família, é o primeiro passo. Da mesma forma, o trabalho para o sistema de renda é uma das instituições mais "não-livres" que poderiam existir hoje, não só no que diz respeito à coerção econômica inerente, mas também no que diz respeito à própria estrutura corporativa, que é literalmente uma ditadura hierárquica de cima para baixo.

Infelizmente, mesmo com essas possibilidades presentes e reais, o distúrbio no sistema de valores, construído a partir do modelo capitalista e o seu medo e paranóia em relação a tudo o que é externo, continuará a combater essas possibilidades de estados mais elevados de liberdade. Na verdade, a própria ideia de prestar apoio social básico na forma de "bem-estar", ou semelhante, é atacada, em parte, com base no distanciamento de um mercado livre - o próprio mercado que, na verdade, provavelmente criou o estado de miséria daqueles que necessitam de tal assistência.

Como nota final sobre o tema da "liberdade", a teoria capitalista, tanto histórica quanto moderna, é desprovida de qualquer relação com os recursos da Terra e suas leis ecológicas governantes. À parte a consciência primitiva de escassez, que é um marcador da teoria de valor comum da "oferta e procura", a natureza científica do mundo está em falta nesse modelo - é "externa". Essa omissão, emparelhada com a realidade exploradora e minimizadora de custos inerente ao sistema de incentivos do mercado, é o que tem gerado os vastos problemas ambientais, desde esgotamento do solo, à poluição, ao desmatamento, a praticamente tudo o que podemos pensar em um nível ecológico.

Ao analisar o desenvolvimento inicial dessa filosofia, podemos especular logicamente sobre como ela se tornou assim. Dada a grande base de produção agrária e o minimalismo do início "artesanal" da produção de bens, a nossa capacidade em afetar negativamente o meio ambiente era inerentemente limitada, na época. Nós simplesmente não éramos uma grande ameaça, já que a grande estrutura industrial, como a conhecemos hoje, não tinha evoluído.

Esse desenvolvimento revela que sob a superfície do capitalismo está uma velha perspectiva, que está se tornando cada vez mais desatualizada, resultando em repercussões recorrentes conforme nossa capacidade tecnológica aumenta a nossa habilidade de afetar o mundo. Um paralelo seria a instituição bélica. Valores competitivos e guerra eram uma realidade tolerável quando o dano causado estava limitado aos primitivos mosquetes de séculos atrás. Hoje, nós temos armas nucleares que podem destruir tudo. [377] Assim, tomando uma visão evolutiva, o capitalismo tem sido uma orientação de práticas e valores que ajudaram o progresso de determinadas maneiras, mas todas as evidências agora tendem a mostrar que a imaturidade inerente ao sistema levará a um aumento contínuo dos problemas, se ele persistir.

A "MERCANTILIZAÇÃO" DA VIDA

Como um ponto final neste ensaio, a tendência crescente da mercantilização da vida criou uma profunda distorção de valores no mundo. Desde que "liberdade" tem sido culturalmente associada a "democracia", e democracia, no sentido econômico, tem sido associada com a capacidade de comprar e vender, a mercantilização de quase tudo o que se pode pensar vem ocorrendo. Os valores tradicionais e a retórica das gerações passadas, muitas vezes, associou o uso do dinheiro em alguns aspectos como uma espécie de necessidade "fria", com alguns elementos de nossas vidas considerados "sagrados" e não vendáveis. O ato da prostituição, por exemplo, em que as pessoas vendem intimidade por dinheiro, é uma situação em que os valores culturais costumam se alienar. Na maioria dos países o ato é ilegal, mesmo que haja pouca justificativa legal já que o próprio envolvimento sexual é permitido. É somente quando o elemento da compra entra em jogo que ele passa a ser considerado repreensível.

No entanto, tais caracteres sagrados que foram perpetuados culturalmente estão sendo cada vez mais anulados pela mentalidade de mercado. Hoje, independentemente de ser legal ou não, quase tudo pode ser comprado ou vendido. [378] Você pode comprar o direito de se desviar de normas de emissões de carbono, [379] você pode melhorar sua cela na prisão por uma taxa, [380] pode comprar o direito de caçar animais em perigo de extinção, [381] e até comprar a sua entrada em uma universidade de prestígio sem cumprir os requisitos necessários. [382]

Torna-se uma situação estranha quando alguns dos atos mais normais, naturais à vida humana, tornam-se incentivados pelo dinheiro, por exemplo, seu uso para incentivar as crianças a ler [383] ou incentivar a perda de peso. [384] Psicologicamente, o que significa para uma criança ser incentivada pelo dinheiro a realizar seus atos mais básicos? Como isso afetará o seu futuro senso de recompensa? Essas são questões importantes em um mundo à venda, onde o princípio orientador de valores é que somente quando se ganha dinheiro fazendo uma ação é que ela vale a pena ser realizada.

Tais valores de mercado aparecem como uma clara distorção social, já que a própria essência da iniciativa e existência humana está sendo transformada. Embora possamos não ter extrema preocupação sobre questões aparentemente triviais, como o fato de uma pessoa poder comprar o acesso a pistas exclusivas para o transporte coletivo enquanto dirige sozinho [385], a maior manifestação de uma cultura construída sobre bases onde tudo está à venda, é a desumanização da sociedade, já que tudo e todos estão reduzidos a uma simples mercadoria a ser explorada.

Hoje, por mais chocante que possa ser, existem mais escravos no mundo do que em qualquer outro momento da história humana. O tráfico humano foi e continua a ser uma indústria enorme de lucro, vendendo homens, mulheres e crianças em vários contextos.

O Departamento de Estado dos EUA publicou "Estima-se que mais de 27 milhões de homens, mulheres e crianças em todo o mundo são vítimas daquilo que agora é frequentemente descrito com o termo genérico de 'tráfico humano'. O trabalho que permanece combatendo este crime é o trabalho de cumprir a promessa de liberdade - liberdade da escravidão para os explorados e liberdade para os sobreviventes continuarem com suas vidas." [386]

Por fim, enquanto a maioria das pessoas que acreditam no sistema capitalista de livre mercado ficariam eticamente indignadas com esses vastos abusos humanos que ocorrem no mundo, geralmente fazendo distinções entre formas de comércio "morais" e "imorais", o fato em questão é que o próprio conceito de mercantilização não pode delimitar linhas objetivas, e tais realidades "extremas" são, na verdade, simplesmente uma questão de grau de aplicação. De um ponto de vista puramente filosófico, não há diferença técnica entre qualquer forma de exploração de mercado. A psicologia inerente - o distúrbio do sistema de valores - perpetuou e continuará a perpetuar um desrespeito predatório dentro da cultura, e apenas quando esse mecanismo estrutural for retirado da nossa própria abordagem de organização social é que as questões acima mencionadas encontrarão resolução.
Consultar notas AQUI



fonte:umanovaformadepensar

Ab alio expectes, quod alteri feceris

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